Não tinha sido um dos melhores dias, as bolsas viviam um inferno astral assustador, nem mesmo o anuncio da Presidência Americana sobre um novo plano econômico acalmou os nervos.
Era sexta-feira, minha esposa havia pedido para que eu pegasse meu filho no colégio, pois ela também estava atrasada devido a complicações no trabalho, e como é de costume acabei atrasando, pois achei que dava tempo para fechar algumas planilhas antes das dezoito horas.
Saí do escritório na correria. Na correria modo de falar, pois ultimamente o trânsito de Londrina não tem permitido tal regalia.
Já no colégio onde meu filho estuda, pude observar que apenas ele ainda encontrava-se por lá, a imagem calma e serena da freira que o tomava conta, me isentou da sensação de pai irresponsável.
Nem tive a oportunidade de dar-lhe um beijo, pois a cria entrou pela porta de trás e foi logo se acomodando. Se ele me disse algo, não me lembro, apenas repeti a mecânica pergunta: “tudo bem filhão?”.
O menino todo feliz por me ver, ainda tentou algum diálogo, mas logo notou que eu não estava para conversa, e foi logo se calando, em seu mundo de solidão, iniciando a suas brincadeiras com seus brinquedos que estrategicamente eu deixava no banco de trás.
Meu rádio como sempre sintonizava a Voz do Brasil, era necessário saber como reagiria o governo brasileiro diante à invasão de Trípoli e a queda do Primeiro Ministro do Japão.
___ Que trânsito horrível! Que saudade da época em que por estas ruas apenas os carros mais lentos e as carroças iam e voltavam. "ainda resmunguei"...
Minha indignação soava na contramão de minhas atitudes, pois este era o meu segundo carro novo em menos de seis meses, eu tinha agora um importado composto do que há de mais moderno em todo o mundo. Lá atrás, meu filho se divertia com seus brinquedos, mas se preferisse, tinha acesso a internet e a vídeos diretos dos Estúdios Disney.
Talvez isso me tranquilizasse sobre a falta de atenção que eu lhe proporcionava.
O relógio já marcava oito horas, a Voz do Brasil já havia terminado, eu passava pela frente da Prefeitura Municipal. Passava não! Estava parado. Pois o trânsito era de uma lentidão descomunal.
Desculpa! Talvez você não seja de Londrina, então vou te explicar.
Quando você sai do centro em direção à zona sul da cidade, as duas melhores opções podem ser, ir pela via expressa, ou seguir pela Avenida Duque de Caxias, última esta a qual eu me encontrava. Quase em seu final para acessar outra avenida de nome Inglaterra. Seguindo este caminho, você vai passa na frente da Prefeitura, e um pouquinho mais a frente um semáforo que não muito diferente do resto da cidade estava inerte.
A lentidão era tanta, que eu dirigia com a mão direita no volante, a outra forrando a cabeça que eu encostava contra o vidro, quase cochilando.
Mais a frente, observei que havia uma blitz, destas em que o guarda ignora pneus carecas, falta de freios e capacete aberto, mas indiscutivelmente você será multado se o seu IPVA estiver vencido.
Eu quase dormia diante tanta lentidão, quando fui surpreendido pelo meu filho que eu já havia esquecido no banco traseiro.
___ Papai, me compra um curumim?
___ Compro, filho! Respondi mecanicamente como todas as outras vezes.
Não demorou muito e novamente veio a pergunta:
___ Papai, me compra um curumim? Comecei a esbravejar, tipo; já disse que compro, agora fica quietinho vai! Peraí! Pensei! Como assim? Me compra um curumim?
Ao olhar pelo retrovisor a surpresa. Meu filho com as duas mãozinhas colocada no vidro já embaçado com sua respiração, olhava atentamente para o lado de fora. Abaixei um pouquinho o vidro e entendi o porquê de seu pedido.
Logo ali sentadinhos na calçada três curumins olhavam atentamente aquela muvuca que acontecia com o trânsito.
Dois maiorzinhos, cuidavam do recém nascido que brincava pela calçada. Enquanto seus pais Kaigangs aproveitavam da lentidão do trânsito para oferece seus cestos aos motoristas.
A indignação interna e a sensação de culpa, silenciou por instante a barulheira das buzinas provocadas pelo trânsito. Aqueles que meu filho chamava de curumins, eram vistos por mim como apenas mais um conjunto de crianças abandonadas, como é comum observarmos pelas calcadas do país. Por quantas vezes havia passado por ali e ignorado a presença daquela gente. Jogados a própria sorte à margem de um riacho calçado por concreto, escoando a poluição da cidade, vivendo em barracas de lona preta. Seus pais, perdidos entre o ser ou não ser indígena. Nos traços a herança hereditária de uma nação forte que aos poucos foram empurradas aos becos e às condições sub-humanas. Pelo corpo distribuído as vestias com as etiquetas famosas doadas por quem acha que uma calça ou um boné pode cobrir a vergonha que nós criamos desde que os presenteamos com um espelho.
E pela primeira vez, sou tocado por uma destas flechas. Não só pelas condições que nós ditos civilizados os empunhemos, mas pela inocente flecha do pedido de meu filho. Aquele a quem pago um dos mais caros colégios da cidade, onde creio eu que terá uma boa formação, acaba de colocar o dedo sobre a minha aberta e ardente ferida, acaba de apontar na prateleira de minha arrogância o produto que eu e minha sociedade criamos.
___ Porque você quer um curumim, meu filho?
___ Horas papai! Quando o senhor me deu o Rex, o senhor disse que era porque ele estava abandonado. Que ele precisava de um lar. Olha os curumins, eles também precisam de uma lar. Não é?
Um nó me tomou a garganta, quase não consegui responder.
___ Mas filho! Curumins não são iguais ao Rex, eles são pessoas iguais a você, já tem família, tem pai e mãe são apenas mais livres do que nós.
___ Não parece papai! Se tivessem alguém, não estariam ali há essa hora na calçada. E o senhor deve lembrar, o Rex também estava na calçada, abandonado igual a eles.
Meu DEUS! Oque dizer a esta criança agora, se passei a vida inteira sem ensinar-lhe nada sobre a vida?
___ E tem mais papai! Um curumim, pode morar comigo no quarto, o Rex a mamãe não deixa. Posso dar a eles aqueles meus brinquedos, e a noite eles podem me ensinar como se chama cada estrela do céu. Compra pai! Vai! Me compra um curumim!
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